terça-feira, outubro 23, 2007

No te Olvido

Desde o princípio, além da sua beleza, Faulques ficou fascina­do pela forma como Olvido se comportava; pela sua forma de con­versar, de inclinar a cabeça depois de uma frase ou de ouvir com ar cúmplice como se nunca acreditasse totalmente em nada, pelos seus modos de menina bem-educada e um pouco altiva, pela sua cruel­dade suave – era demasiado jovem e demasiado bonita, para co­nhecer a compaixão desprovida de calculismo – temperada com um humor fulgurante e uma cortesia travessa. Era também, compro­vou Faulques, uma mulher que não passava despercebida embora se empenhasse nisso: os homens cediam-lhe a passagem à entrada ou abriam-lhe as portas dos automóveis, os empregados de mesa acorriam a um simples olhar, os maîtres dos restaurantes reserva­vam-lhe a melhor mesa disponível e os gerentes de hotel o quarto com a melhor vista. Olvido correspondia a tudo isto com aquele seu sorriso peculiar, simultaneamente irónico e afectuoso, com o humor vivo e culto das suas observações, com a faculdade inesgotá­vel de se colocar, sem abdicar de nada, à altura de qualquer interlo­cutor. Até as gorjetas nos restaurantes e hotéis eram entregues como quem partilha uma piada em voz baixa. E quando se ria às gargalhadas – fazia-o como um rapazinho travesso e cúmplice –, qualquer homem se deixaria matar por ela ou pelo seu riso. Era muito boa em tudo isso. As pessoas educadas, dizia, seduzem os outros recorrendo a uma coisa muito simples: falam sempre daqui­lo que lhes interessa. Ela podia seduzir com palavras e silêncios em cinco línguas, imitava vozes e gestos alheios com uma facilidade espantosa e tinha uma memória extraordinária para os pormenores. Faulques ouviu-a chamar pelo nome dos porteiros, empregados de mesa e taxistas. Adoptava as gírias, os sotaques, e dizia palavrões com um elegante desembaraço – o seu sangue italiano – quando estava furiosa. Tinha também uma habilidade espontânea para neu­tralizar o lado canalha dos subalternos: o ressentimento oculto sob o servilismo daqueles que serviam os outros de má vontade, so­nhando com revoluções decapitadoras e o ressentimento daqueles que assumiam o seu papel com uma dignidade resignada. As mu­lheres invejavam-na fraternalmente e os homens adoptavam-na à primeira vista de olhos, pondo-se do seu lado. Caso Olvido fosse um homem de princípio de século, Faulques conseguia imaginá-la sem esforço tomando o pequeno-almoço, pela manhã, numa cho­colataria, vestida de casaca, junto dos criados da casa onde, na noite anterior, estivera como convidada do jantar ou de um baile.

Naquela noite do primeiro dia, no México DF, também ele sucumbiu a esse encanto. Apesar das suas próprias reservas, da sua biografia, das suas ideias sobre o mundo, deu consigo com os pul­sos apoiados no rebordo de uma mesa bem localizada de um restau­rante de San Ángel – ele vestia casaco azul-escuro e calças de ganga, ela um vestido cor de malva tão cingido que parecia pintado sobre as suas ancas e pernas longuíssimas, o maître dizendo boa-noite, há quanto tempo, como está o seu pai, menina Ferrara – olhando para os olhos cor de uva idênticos aos daquela Nahui Ollin cuja his­tória ela lhe contara à tarde. Olhava-os com tão inconsciente fixação que a mulher baixou um pouco o rosto e, observando o homem por entre o cabelo castanho-claro que lhe caía sobre o rosto, pôs-se séria um instante, apenas o necessário para dizer temos pouco tem­po, Faulques, sem especificar se se referia àquela noite ou ao resto das suas vidas. Chamou-o assim, pronunciando pela primeira vez não o seu nome, mas o apelido. E sempre o chamaria dessa forma, até ao fim. Três anos. Mil e cinquenta dias confirmando a propor­cionalidade directa de tudo aquilo ao produto do desejo de dois corpos – foi ela quem parafraseou Newton a dada altura, enquan­to se abraçavam sob o duche de um hotel de Atenas –, e a inversa proporcionalidade ao quadrado da distância que os separa. Três anos intensos e viajantes, iniciados naquela noite em que acabaram, tardíssimo, sozinhos num bar da plaza Garibaldi, bebendo até pas­sar a hora de fechar, falando de pintura e de fotografia enquanto os empregados punham as cadeiras sobre as mesas e começavam a varrer o chão; e quando Faulques olhou para o relógio, ela disse que se admirava que um fotógrafo de guerra não fosse capaz de beber impassível sob o fogo dos olhares dos empregados impacientes. Era única a colocar aqui e ali pensamentos alheios em jeito de reflexões espontâneas ou sentenças próprias, engenhosa em ultrapassar obstáculos incorporando-os ao plano original, habilidosa a mentir levando a acreditar que mentia aberta e deliberadamente. Adorava as coisas falsas, coleccionava-as por toda a parte e depois abandonava-as em cestos de lixo de hotéis, em aeroportos, oferecia-as a empregadas, telefonistas e hospedeiras: falso vidro de Murano, falsas rendas de Bruxelas, falsos bronzes antigos, falsas miniaturas do século XVIII compradas em mercados de rua. Andava à vontade entre tudo aquilo, tornando-o valioso com uma palavra ou com um olhar. Era Olvido quem conferia importância às coisas e às pessoas com quem se relacionava, talvez porque possuía a segurança perfeita que só algumas mulheres têm quando o mundo é o seu excitante campo de batalha e os homens um complemento útil mas prescindível.

De qualquer maneira, ela tinha razão. Três anos era pouco tempo, embora nenhum dos dois pudesse imaginá-lo. Nessa primeira noite no México DF, Faulques, que por essa altura já olhava para o mundo à luz dos seus paradoxos e convergências, pensou que o seu nome era Olvido; e soube de chofre, com a precisão fugaz de uma fotografia captada num instante, que ela era a única coisa que nunca conseguiria esquecer.

Agora, pelas janelas abertas da torre chegava o rumor da marulhada crescente na base da falésia, enquanto o pintor de batalhas olhava para o vulcão na parede. Nesse momento, o álcool ingerido, a penumbra ou um efeito de luz do candeeiro a gás fizeram uma sombra atravessar-se diante dos seus olhos. Trémulo, procurou o lugar do vasto mural onde aquela sombra fora esconder-se. Passado um instante abanou a cabeça. É escura, murmurou recordando, a casa onde agora vives.

O Pintor de Batalhas, Arturo Pérez Reverte, escritor

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