Após as entrevistas, a fazer tempo para a sopa de cação nos Infantes, a convite do presidente da organização local de xadrez, um dos edificadores da «Abertura Alentejana», Emanuel foi deambulando pelas brancas ruas de Beja, metendo 0 nariz aqui e alem. Havia uma conferencia, no Politécnico. Entrou. Numa sala a cunha, uma matrona muito loura e desenvolta perorava sobre psicologia canina, como anunciava, no átrio, um papel tratado a computador, coberto de perfis de cães. Da porta, Emanuel aprendeu que os rottweiler são excelentes companheiros e adoram crianças. Quanto aos pitbull, não há melhor nem mais meiga presença. Alguns incidentes que se têm relatado com sensacionalismo e que envolvem cidadãos trucidados são muito empolados pelos media. Ficassem todos sabendo que não existem maus cães, existem é maus donos ... de resto, para alguma coisa haviam de servir as companhias de seguros.
Mais tarde, ao jantar, um dos xadrezistas bem mostrou na conversarão que estas iniciativas culturais que passavam pela cidade deixavam as suas impregnações. De guardanapo atado ao pescoço, uma brancura de cação na extensão do garfo, elucidava:
- Tão vendo? Isto é um pedaço de tubarão e a gente é que esta aqui comendo-o. Dizem praí que os bichos é que mordem, mas quem tá agora mordendo é cá o rapaz.
E prosseguia relatando, tintim por tintim, a conferencia duma benemérita australiana que tinha passado pela cidade. Quais perigos dos tubarões. as tubarões são uns peixes pacíficos, naturalmente predadores, mas que não saem da sua cadeia alimentar sem ser desafiados. a problema são os humanos que invadem 0 seu meio, desinquietam os animais, os obrigam a arremessos defensivos, ou lhes desnorteiam os hábitos. Devemos temer é os homens. Agora os inofensivos tubarões ... Ah, aquelas horríveis imagens de membros decepados também cá chegaram? Sensacionalismo. Propaganda barata anti-esqualo. Não vão para a agua, não provoquem os animais, e verão como eles abdicam daqueles safanões, às vezes um bocadinho mais bruscos.
E todos os três, aquela mesa, se sentiram repassados de sentimentos contraditórios: por um lado, encontravam-se em Beja, no interior, aonde não chegava sequer 0 cheiro do mar e, portanto, não estavam em condições de provocar os reflexos de defesa dos bichos. Mas, por outro lado, conluiavam-se ali, de dentuça assanhada, a devorar avidamente um pobre tubarão com coentros. Podia ser que, por essa altura, no alto mar, um dos irmãos mais velhos ou amigo daquele que jazia na terrina, cortado as postas, emergisse na noite tenebrosa e retaliasse sobre um laborioso pescador, decepando-lhe cerce a perna pela virilha ...
- Hum ... não vai mais. Estou cheio - disse Emanuel, e tirou o guardanapo dos joelhos.
- Eu também ...
- E eu idem.
Fantasia para dois coronéis e uma piscina, Mário de Carvalho, escritor
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