Nunca pensei que o Fernando se tornasse meu amigo. Mas foi isso que aconteceu. Porque permaneceu ao meu lado quando aconteceu o que aconteceu à minha mãe, e porque foi o único que, nos meses seguintes, se interessou por mim, ou seja, por aquilo que eu pensava. E julgo que percebeu tudo. Inclusivamente, o que ainda hoje eu próprio não consigo perceber. Nunca tentou dar-me uma resposta, limitou-se a oferecer-me um livro: o meu primeiro livro, aquele que mudou a minha vida para sempre.
Foi na primeira segunda-feira de Março, um dia antes do começo das aulas (nesse ano, por causa de uma praga de baratas, as aulas começaram numa terça). Eu estava na sala. Comia um pedaço de bolo e folheava uma revista de livros aos quadradinhos quando ouvi o barulho: como se alguém tivesse dado uma pancada na parede. Virei a cabeça e vi a porta de correr da casa de banho a entreabrir-se. E a mão: a mão da minha mãe surgiu rente ao chão. Fiquei de pedra, foi um instante apenas, mas lembro-me bem. Ouvi um som fraco, um queixume, e, então, aproximei-me. Estava assustado e mal conseguia andar. Corri para a porta e vi a minha mãe caída: o cabelo louro em desalinho, cheio de sangue, tanto sangue que quase vomitei. No início, não consegui perceber onde estava a cara, onde a nuca. Recordo-me do cabelo despenteado sobre os ombros nus; que estava de barriga para baixo, apenas envolta numa toalha, com a cabeça de lado, os braços estendidos e as palmas viradas para cima. Outro queixume uma sorte de i fraco que emitia ao respirar. Agachei-me e peguei-lhe na mão. A mão da minha mãe, outrora sempre tão morna, estava agora gelada. Lentamente, fechou-se sobre a minha, e a sua voz, quase imperceptível, balbuciou qualquer coisa que eu entendi ser: «à avó, não». Levantei-me e desatei a correr, quase dei cabo de mim ao chocar contra uma cadeira, atravessei o pátio, saí à rua e cheguei à porta da oficina.
Estava fechada à chave. O Alejandro e o Coco tinham deixado um aviso que dizia: Regressamos daqui a uma hora. Deu-me uma fúria e preguei um pontapé na porta. Reparei que a dona da casa do lado estava a olhar para mim, oculta atrás da cortina da janela. Levantei a mão e, antes de ter tempo de lhe fazer outro sinal, a mulher enfiou-se dentro de casa. Soube que a única hipótese que me restava era acordar a minha avó. Só de pensar na sua cara de velório antecipado, revolveram-se-me as entranhas. Atravessei a rua a correr e foi aí que, completamente cego, esbarrei contra o Fernando. Perguntou-me se tinha acontecido alguma coisa e contei-lhe.
Entrámos, passámos a zona dos meus tios e acedemos à minha casa. O Fernando despiu o casaco e foi ver a minha mãe. Arregaçou as mangas da camisa e soube logo o que tinha de fazer. Pegou na minha mãe por baixo dos braços e sentou-a no chão. Encharcou uma toalha e o seu próprio lenço com água no lavatório, agachou-se e pôs-lhe a toalha molhada, embrulhada num rolo, atrás da nuca. Fazia tudo com muito cuidado e, diga-se em abono da verdade, a mariquice não se lhe notou nem um pouco. Melhor dizendo: não foi nada maricas. Aproximei-me e via a cara da minha mãe, estava pálida e tinha um golpe na sobrancelha esquerda, seguramente provocado pela queda. Já não estava a sangrar. Pensei que já tinha perdido o sangue todo e tive medo. Havia um monte de comprimidos cor-de-rosa velho amontoados e humedecidos no fundo do lavatório. Vai morrer, pensei, enquanto o Fernando lhe amparava a cabeça e lhe molhava a cara com o lenço. Na verdade, o pensamento chegou-me como uma revelação, ou como uma voz pessimista que me dizia que a minha mãe já estava morta. Disse-o ao Fernando.
— O que é que estás para aí a dizer? — respondeu. — Não vai acontecer nada à tua mãe. — Anotou um número num papelinho e deu-me um molho de chaves. — Vai a minha casa, telefona ao médico da minha parte e pede-lhe que venha depressa. É meu amigo. Sabes usar um telefone?
Respondi-lhe que também sabia sacudir a picha sozinho, mas arrependi-me logo a seguir: o Fernando estava a ajudar-me, muito preocupado e muito seguro de como lidar com a situação. Achei que era injusto ter-lhe respondido daquela maneira. A casa da mãe dele era das poucas que tinha telefone naquela época, e a pergunta do Fernando era lógica ou, pelo menos, bem-intencionada. No entanto, eu estava furioso. Olhava para a minha mãe esforçando-me por não a odiar com toda a minha alma. Subitamente, revelava-se-me como uma pessoa falsa. Sempre nos tinha dito que gostava muito de nós, mas quando se tentou matar nem sequer se lembrou de nós. Apeteceu-me que morresse ali mesmo, já que o desejava assim tanto, e disse-o ao Fernando. Ele, longe de me recriminar, repetiu-me que tudo correria bem, que não ia acontecer nada à minha mãe e que, mais tarde, se eu quisesse, podíamos falar com mais calma.
Corri pelo corredor até à rua com o cartão numa mão e a chave noutra. E foi então que aconteceu: mal um dos meus pés tocou na rua, o tempo deteve-se. E deteve-se mesmo. Fiquei congelado, os pés inertes no limiar da porta de minha casa, qual soldadinho de plástico em acção de guerra. Porém, não me sentia colado ao chão ou com as pernas metidas num bidão de alcatrão, ou uma coisa do género, não, nada disso. Nem sequer sentia os pés, as mãos ou a cabeça. A rua Magán parecia outra rua, distante, com um vento que sentia soprar de maneira irreal. Um vizinho passou diante de mim e julguei que ficasse admirado ao ver a estátua viva do filho do bobinador em posição de sair de casa, mas, em vez disso, ignorou-me completamente. Pensei que, se conseguisse cumprimentá-lo, me salvaria, mas não fui capaz. Tinha a cabeça a funcionar, e a mil à hora, mas não conseguia transformar os meus pensamentos em acções. Então, como se se tivessem virado contra mim todos os desejos que, instantes antes, tivera em relação à minha mãe, senti-me morrer, agrilhoado ao limiar da minha casa, sem forças para respirar.
Creio que a apenas um segundo da loucura fui salvo pelo Fernando e, a partir desse momento, ele converteu-se no meu anjo da guarda. Dali para a frente, nunca mais o voltei a chamar paneleiro, nem sequer à frente dos mais velhos.
— O que é que ainda estás aqui a fazer? — perguntou-me, e, pouco a pouco, senti os meus músculos a começarem a mexer-se — A tua mãe já está melhor, deixei-a com a tua avó, e vim ver se já tinhas chamado o médico.
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