Para parar de pensar nada melhor
que trabalhar com as mãos. Peguei minha caixa de ferramentas, a serra circular
e a furadeira e fui para o terceiro andar, onde guardo os meus livros.
Iria fazer umas estantes. As
tábuas já estavam lá. Nem bem comecei a trabalhar de carpinteiro e fui
interrompido com a chegada da faxineira. Com ela, sua filhinha de 7 anos,
Dinéia. Carinha redonda, sorriso mostrando os dentes brancos, trancinhas estilo
afro.
O que era de se esperar numa
menina da idade dela era que ficasse com a mãe. Não ficou. Preferiu ficar
comigo, vendo o que eu fazia. Por que ela fez isso? Curiosidade. Curiosidade é
uma coceira que dá nas idéias... Aquelas ferramentas e o que eu estava fazendo
a fascinavam. Ela queria aprender.
“O que é isso que você tem na
mão?”, ela perguntou. “É uma trena”, respondi. “Para que serve a trena?”, ela
continuou. “A trena serve para medir. Preciso de uma tábua de um metro e vinte.
Assim, vou medir um metro e vinte. Veja!” respondi. Puxei a lâmina da trena e
lhe mostrei os números. Ela olhou atentamente. “Você já sabe os números?”,
perguntei. “Sei”, ela respondeu. Continuei: “Veja esses números sobre os
risquinhos. O espaço entre esses risquinhos mais compridos é um centímetro. Um
metro tem cem centímetros, cem desses pedacinhos. Note que de dez em dez
centímetros o número aparece escrito em vermelho. É que, para facilitar, os
centímetros são amarrados em pacotinhos de dez.
Um metro é feito com dez
pacotinhos de dez centímetros. Um metro e vinte são dez desses pacotinhos, para
fazer um metro, mais dois, para completar os vinte centímetros que faltam”.
Marquei um metro e vinte na tábua com um lápis e me preparei para riscar a tábua.
Assim se iniciou uma das mais
alegres experiências de ensino e aprendizagem que tive na minha vida. A Dinéia
queria saber de tudo. Não precisei fazer uso de nenhum artifício de “motivação”
para que ela estivesse motivada. O que a motivava era o fascínio daquilo que eu
estava fazendo e das ferramentas que eu estava usando. Seus olhos e pensamentos
estavam coçando de curiosidade. Ela queria aprender para se curar da coceira...
Os gregos diziam que a cabeça começa a pensar quando os olhos ficam estupidificados
diante de um objeto. Pensamos para decifrar o enigma da visão. Pensamos para
compreender o que vemos. E as perguntas se sucediam: ‘Para que serve o
esquadro?’; ‘Como é que as serras serram?’; ‘Por que é que a serra gira quando
se aperta o botão?’; ‘O que é a eletricidade?’.
Lembrei-me de Joseph Knecht, o
mestre supremo da ordem monástica Castália, do livro de Hermann Hesse O jogo
das contas de vidro. Velho, ao final de sua carreira, no topo da hierarquia dos
saberes, ele se viu acometido por um enfado sem remédio com tudo aquilo e
passou a sentir uma grande nostalgia: queria descer da sua posição para fazer
uma coisa muito simples: educar uma criança, uma única criança, que ainda não
tivesse sido deformada pela escola.
Pois ali estava eu, vivendo o sonho
de Joseph Knecht: a Dinéia, que ainda não fora deformada pela escola. Seu rosto
estava iluminado pela curiosidade e pelo prazer de entrar num mundo que não
conhecia.
Lembrei-me da afirmação com que
Aristóteles inicia a sua Metafísica: “Todos os homens têm, por natureza, um
desejo de conhecer: uma prova disso é o prazer das sensações, pois, fora até de
sua utilidade, elas nos agradam por si mesmas e, mais que todas as outras, as visuais...”.
Acho que Aristóteles errou. Isso
não é a verdade dos adultos. Os adultos já foram deformados. Acho que ele
estaria mais próximo da verdade se tivesse dito: “Todos os homens, enquanto
crianças, têm, por natureza, desejo de conhecer...”.
Para as crianças o mundo é um
vasto parque de diversões. As coisas são fascinantes, provocações ao olhar.
Cada coisa é um convite.
Aí a Dinéia sumiu. Pensei que ela
tivesse voltado para a mãe.
Engano. Alguns minutos depois ela
voltou. Estivera examinando uma coleção de livros. “Sabe aqueles livros, todos
de capa parecida? Os três primeiros livros estão de cabeça para baixo.”
Retruquei: “Pois ponha os livros de cabeça para cima!”.
Ela saiu e logo depois voltou. “Já
pus os livros de cabeça para cima.” E acrescentou: “Sabe de uma coisa? O livro
com o número 38 está fora do lugar”. Aí aconteceu comigo: fui eu quem ficou
estupidificado...
Ela, que não sabia escrever, já
sabia os números. E sabia mais, que os números indicam uma ordem.
Fiquei a imaginar o que vai
acontecer com a Dinéia quando, na escola, os seus olhinhos curiosos forem
subtraídos do fascínio das coisas do mundo que a cerca, e forem obrigados a
seguir aquilo a que os programas obrigam. Será possível aprender sem que os
olhos estejam fascinados pelo objeto misterioso que os desafia?
Pois sabe de uma coisa? Acho que
vou fazer com a Dinéia aquilo que Joseph Knecht tinha vontade de fazer...
Curiosidade é uma coceira nas ideias, Rubem Alves, educador, psicanalista, escritor e teólogo
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