quinta-feira, julho 12, 2012

Mordem-me as ideias! Que criancice...

Eu estava com a cabeça quente. Queria descansar, parar de pensar.
Para parar de pensar nada melhor que trabalhar com as mãos. Peguei minha caixa de ferramentas, a serra circular e a furadeira e fui para o terceiro andar, onde guardo os meus livros.
Iria fazer umas estantes. As tábuas já estavam lá. Nem bem comecei a trabalhar de carpinteiro e fui interrompido com a chegada da faxineira. Com ela, sua filhinha de 7 anos, Dinéia. Carinha redonda, sorriso mostrando os dentes brancos, trancinhas estilo afro.
O que era de se esperar numa menina da idade dela era que ficasse com a mãe. Não ficou. Preferiu ficar comigo, vendo o que eu fazia. Por que ela fez isso? Curiosidade. Curiosidade é uma coceira que dá nas idéias... Aquelas ferramentas e o que eu estava fazendo a fascinavam. Ela queria aprender.
“O que é isso que você tem na mão?”, ela perguntou. “É uma trena”, respondi. “Para que serve a trena?”, ela continuou. “A trena serve para medir. Preciso de uma tábua de um metro e vinte. Assim, vou medir um metro e vinte. Veja!” respondi. Puxei a lâmina da trena e lhe mostrei os números. Ela olhou atentamente. “Você já sabe os números?”, perguntei. “Sei”, ela respondeu. Continuei: “Veja esses números sobre os risquinhos. O espaço entre esses risquinhos mais compridos é um centímetro. Um metro tem cem centímetros, cem desses pedacinhos. Note que de dez em dez centímetros o número aparece escrito em vermelho. É que, para facilitar, os centímetros são amarrados em pacotinhos de dez.
Um metro é feito com dez pacotinhos de dez centímetros. Um metro e vinte são dez desses pacotinhos, para fazer um metro, mais dois, para completar os vinte centímetros que faltam”. Marquei um metro e vinte na tábua com um lápis e me preparei para riscar a tábua.
Assim se iniciou uma das mais alegres experiências de ensino e aprendizagem que tive na minha vida. A Dinéia queria saber de tudo. Não precisei fazer uso de nenhum artifício de “motivação” para que ela estivesse motivada. O que a motivava era o fascínio daquilo que eu estava fazendo e das ferramentas que eu estava usando. Seus olhos e pensamentos estavam coçando de curiosidade. Ela queria aprender para se curar da coceira... Os gregos diziam que a cabeça começa a pensar quando os olhos ficam estupidificados diante de um objeto. Pensamos para decifrar o enigma da visão. Pensamos para compreender o que vemos. E as perguntas se sucediam: ‘Para que serve o esquadro?’; ‘Como é que as serras serram?’; ‘Por que é que a serra gira quando se aperta o botão?’; ‘O que é a eletricidade?’.
Lembrei-me de Joseph Knecht, o mestre supremo da ordem monástica Castália, do livro de Hermann Hesse O jogo das contas de vidro. Velho, ao final de sua carreira, no topo da hierarquia dos saberes, ele se viu acometido por um enfado sem remédio com tudo aquilo e passou a sentir uma grande nostalgia: queria descer da sua posição para fazer uma coisa muito simples: educar uma criança, uma única criança, que ainda não tivesse sido deformada pela escola.
Pois ali estava eu, vivendo o sonho de Joseph Knecht: a Dinéia, que ainda não fora deformada pela escola. Seu rosto estava iluminado pela curiosidade e pelo prazer de entrar num mundo que não conhecia.
Lembrei-me da afirmação com que Aristóteles inicia a sua Metafísica: “Todos os homens têm, por natureza, um desejo de conhecer: uma prova disso é o prazer das sensações, pois, fora até de sua utilidade, elas nos agradam por si mesmas e, mais que todas as outras, as visuais...”.
Acho que Aristóteles errou. Isso não é a verdade dos adultos. Os adultos já foram deformados. Acho que ele estaria mais próximo da verdade se tivesse dito: “Todos os homens, enquanto crianças, têm, por natureza, desejo de conhecer...”.
Para as crianças o mundo é um vasto parque de diversões. As coisas são fascinantes, provocações ao olhar. Cada coisa é um convite.
Aí a Dinéia sumiu. Pensei que ela tivesse voltado para a mãe.
Engano. Alguns minutos depois ela voltou. Estivera examinando uma coleção de livros. “Sabe aqueles livros, todos de capa parecida? Os três primeiros livros estão de cabeça para baixo.” Retruquei: “Pois ponha os livros de cabeça para cima!”.
Ela saiu e logo depois voltou. “Já pus os livros de cabeça para cima.” E acrescentou: “Sabe de uma coisa? O livro com o número 38 está fora do lugar”. Aí aconteceu comigo: fui eu quem ficou estupidificado...
Ela, que não sabia escrever, já sabia os números. E sabia mais, que os números indicam uma ordem.
Fiquei a imaginar o que vai acontecer com a Dinéia quando, na escola, os seus olhinhos curiosos forem subtraídos do fascínio das coisas do mundo que a cerca, e forem obrigados a seguir aquilo a que os programas obrigam. Será possível aprender sem que os olhos estejam fascinados pelo objeto misterioso que os desafia?
Pois sabe de uma coisa? Acho que vou fazer com a Dinéia aquilo que Joseph Knecht tinha vontade de fazer...
Curiosidade é uma coceira nas ideias, Rubem Alves, educador, psicanalista, escritor e teólogo

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