Primeira Parte
1.
Tu que me dominas,
Deus doador de hálito e alimento,
Amarra do mundo, controle do mar,
Senhor dos vivos e dos mortos;
Tu me ligaste ossos e veias e me colaste a carne
E após, quase desfizeste, quem sabe, por medo,
O teu feito: e ora pões-te de novo a tocar-me?
Mais uma vez te encontro, sinto o teu dedo.
2.
Sim, eu disse sim
Ah! ao raio e à vara do açoite,
E tu me ouviste, mais vero que a palavra, confessar
Teu terror, Ó Cristo, Ó Deus;
Tu conheceste os muros, a hora, o altar, a noite;
O desfalecer de um coração que tua brusca arremetida tão duramente
Espezinhou, com tal horror de altura:
O diafragma torcido ao vergar-se, num fogo de tensão premente.
3.
A ira de tua face
Diante de mim, o crepitar do inferno
Atrás de mim, onde, onde achar, onde um refúgio?
Asas desfraldei naquele transe
E num arranco do coração fugi para o coração da Hóstia.
Coração meu, ouso dizer que era de pombo a tua asa.
Sagaz pombo-correio (chega a tal a minha vanglória),
Para chispar assim de chama a chama, subir da graça à graça.
4.
Sou areia a cirandar
Em uma ampulheta – rente às paredes,
Mas por dentro minada por um movimento, uma corrente,
Que se adensa e escoa até o fim.
Eu quedo como água num poço, imóvel, placa de vidro,
Mas recebendo os filetes todo o tempo caindo da crista,
Pelas encostas e vertentes do monte – filões
Da proposta do Evangelho, uma pressão, um princípio, um dom de Cristo.
5.
Atiro um beijo
Às estrelas, adorável dispersão
De luz-de-estrelas, em lufada levando-O, e
Incandesço, glorio-me no trovão;
Atiro um beijo ao poente, mosqueado em cor-de-ameixa;
Pois, embora Ele no mundo se oculte sob o fulgor, o deslumbramento
Seu mistério tem de ser apreendido, enfatizado;
Saúdo-O, então, nos dias em que O encontro, rendo graças quando compreendo.
6.
Não de sua bem-aventurança
Provém o impacto que sofremos
Nem primeiro do Céu (poucos o sabem)
Pende o golpe que recebemos –
Golpe e impacto que as estrelas e as tormentas transmitem –
Pelo que a culpa é atenuada, os corações inflamados se enternecem
Mas isso atravessa o tempo, como se singra um rio
(E aí os fiéis vacilam, e os sem-fé fabulam e se perdem).
7.
Isso data do dia
Da ida d’Ele à Galiléia.
Cálido túmulo de escura vida-útero;
Manjedoura; colo de virgem;
A densa, compelida Paixão, o suor do horror –
Donde se desencadeia isso tudo, inda sempre a expandir-se,
Embora já antes pressentido, embora ainda em maré-cheia –
O que ninguém perceberia, somente um coração acuado, a consumir-se
8.
O desabafa! Oh!
Num jato, com a melhor ou a pior
Das palavras! Como a ameixa túmida-de-suco, casca-de-veludo,
Abocada, apertada contra o palato,
Arrebenta, tinge de rubro o homem, o seu ser, e, amarga ou doce,
Transborda num jorro! – Para isso, cedo ou tarde, então
Para o herói do Calvário, para os pés de Cristo –
Nunca perguntes se pretendendo, ou querendo, ou sabendo – os homens vão.
9.
Seja entre os homens adorado,
Deus, de tríplice forma;
Força o teu rebelde, em covil acossado,
Malícia humana, com naufrágio e tormenta.
Impossível exprimir quão doce, a língua não o pode expressar –
Tu és relâmpago e amor, eu descobri, inverno e verão,
Pai e carícia do coração que torturaste:
Tens descidas tenebrosas, e então é quando és todo compaixão.
10.
Com golpes na bigorna,
Ou em fornalha, molda-o à Tua vontade,
Ou melhor, melhor então, vem sorrateiro, qual Primavera
Penetrando-o, dissolvendo, mas domina-o deveras:
Quer seja súbito, num choque, como a Paulo, uma vez,
Ou como a Agostinho, em ternas artimanhas prolongado,
Usa Tua misericórdia em nós, mas por fora,
Domina-nos a todos, conquanto sejas adorado, sejas Rei adorado.
Segunda Parte
11.
“Uns sente-me uma espada; outros,
Flanges e trilhos; labaredas;
Presas de fera; dilúvios” – vai a Morte rufando,
E tempestades, sua fama trombeteando.
Mas nós nos sonhamos enraizados na terra – Pó!
A carne tomba à nossa vista; mas – flores a balouçar
No campo – nós nos esquecemos que, sem dó,
A ácida foice nos vai ceifar; a vista nos vai vidrar.
12.
No sábado partiram de Bremen
Com destino a plagas da América;
Entre marujos, colonizadores, mulheres, homens,
Cerca de duzentas almas –
Ó Pai, não sob tuas asas, pois jamais eles pressentem
Seu fim ali no baixio e, para muitos, o destino de afogados;
Contudo, o lado sombrio do arco de Tua bênção
Não os cobriu, as voltas mil de Tua mercê não os colheu enlaçados?
13.
Na nevasca o navio desliza,
O porto atirando para trás,
O Deutschland, no domingo; um céu falaz,
Pois não está nada propício o ar infinito.
É o oceano grosso de areia, negro dorso, na rajada regular
Do Nordeste soprando, vento em quadrante maldito;
Alva-áspera-feroz, a neve-que-o-furacão-faz-girar
Parafusa o mar, e ele faz viúvas, órfãos, pais-sem-filhos.
14.
Na treva, avançava contra o vento
E bateu – não em recife ou rocha –
Mas na crista de um amontoado de areia; a noite puxou-o
Morto para Kentish Knock;
E ele devastou o baixio com a proa e o arrastar da quilha:
Rolaram vagalhões sobre as traves e sua fúria as destroçou,
E velame, bússola, hélice e leme,
P’ra sempre inúteis para impeli-lo, guiá-lo – por isso tudo ele passou.
15.
A esperança já encanecia,
A esperança se cobria de luto;
Sulcada de lágrimas, esculpida em agonia,
Já doze horas antes se extinguira;
E, medonha, a noite envolveu desventurado dia
Sem socorro, só brilhavam foguetes e faróis de barco,
Enquanto as vidas iam sendo tragadas pelas águas:
Eles subiam pelas enxárcias, sacudidos aos arrancos do ar conflagrado.
16.
Um moveu-me no cordame, quer salvar
As desvairadas mulheres lá embaixo
Por uma corda amarrado, prestativo e bravo –
Mas de chofre arremessado à morte –
Inúteis seus músculos másculos, seu ânimo forte:
Os outros, por horas, contaram seu ir-e-vir nos rompantes
De espumarado pedregulho; como podia lutar
Contra o ar espocando aos borbotões, o corcovear das vagas inundantes?
17.
Lutaram contra o frio de Deus –
Não agüentaram e tombaram no convés
(Que os amassou), ou na água (que os afogou), ou rolaram
Aos galopes do mar, sobre os destroços.
Rugia a noite, partido coração ouvindo os corações partidos,
Choro de crianças, mulheres que em lamúrias se afligem,
Até que ergueu-se uma leoa, enfrentando os gemidos,
Ergueu-se uma profetisa, e no tumulto ressoou uma voz de virgem.
18.
Ah! tocado na arca de teus ossos,
Pois não? vergando à dura aflição,
Não estás? dá-me palavra, a mim, a sós,
Dá-me, mãe-de-meu-ser, meu coração.
Incorrigível no encalço do mal, mas gritando a verdade –
Ah! lágrimas? Sim, lágrimas – prelúdio de madrigal, tal emoção?
Arroubo, torrente da mocidade, que a idade
Não estanca? – o que de bom ainda guardas é a causa de tanta exaltação?
19.
Irmã, uma irmã chamava
Um mestre – seu mestre e meu! –
E, a bordo, o mar em remoinhos arrastava;
O oceano, em rudes ímpetos golpeando,
Cegava-a, mas só uma coisa ela vê no temporal – uma só;
Descobre em si uma inspiração: e o brado da esguia monja
Aos homens no tope, na cordoalha, subiu acima do fragor da tormenta.
20.
Era a primeira de cinco freiras
De brancas coifas numa irmandade,
(Ó Deutschland, duplo acinte ao nome teu!
Ó distância do que em ti é bondade!
Mas Gertrude, lírio, e Lutero são da mesma cidade,
O lírio de Cristo e a besta da devastada silva:
Desde a aurora da vida isso já teve ensejo –
Abel é irmão de Caim, ambos sugaram o mesmo seio.)
21.
Odiadas pelo amor que revelaram,
Banidas da terra em que nasceram,
O Reno as recusou; o Tâmisa as arruinou;
Arrebentação, neve, rios, terras
Rosnaram; mas tu pairas acima deles, Orion de luz;
Tuas palmas inabaláveis, imóveis, sopesavam o valor,
Tu, mestre dos mártires; aos olhos Teus
As bátegas eram flores em volutas, chuva de lírios – através deles, o Céu e seu dulçor.
22.
Cinco; a divisa e o signo
E a cifra das chagas de Cristo.
Marca: a marca é obra de homem
E o nome dela, Sacrificado.
Mas ele mesmo a estampa em escarlate em seu predestinado,
Desde todos os tempos, o mais prezado, o mais precioso –
Estigma, sinal, emblema pentafolhado
A rotular o velo do cordeiro, a enrubescer as pétalas da rosa.
23.
Alegra-te, Pai Francisco,
Fascinado pela Vida que morreu,
Cravos em ti cravados, nicho de lança, Seu
Espelho-de-amor, crucificado,
E o selo de Sua vinda-em-Serafim! e estas tuas filhas,
Estas cinco pétalas vivas de teu orgulho e teu favor,
Irmamente seladas em águas bravias,
Para banhar-se na chuva-d’ouro de Suas mercês, haurir de Seu olhar abrasador.
24.
Longe, no amorável Oeste,
Num promontório de Gales, pastoral,
Aqui eu estava descansado sob um teto,
E elas, presas do temporal;
Ela, para o ar enegrecido ao redor, a espessa
Chuva-de-flocos, para a turba que se agarrava e se encolhia na dor,
Clamava, “Ó Cristo! Cristo vem depressa!”
A sua cruz que lhe cabe, chama-a Cristo, batiza o seu pior como o Melhor.
25.
A majestade! que quereria ela dizer?
Sopra, arqui-Sopro original.
Desejo de ser tal como fora o seu amado?
Inspira-me, corpo da Morte divinal.
Eles pensavam em outras coisas, todos eles, os homens,
Que Te acordaram com “eis que perecemos”, em Genezaré, na tempestade.
Ou será que ela clamava então pela coroa –
Aguçada sua pressa de chegar ao conforto, sentindo agudo o combate?
26.
Como ao encorajar-se do coração
O cinza, baixas-tetas-roçando-o-chão,
Evola-se, e abrem-se os céus azul-gaio
Do matizado e do macio-maio!
Altura pulsando azul, fulgindo prata; ou a noite, inda mais alta,
Com sinos em fogo e, doce mariposa, a Via-Láctea –
O que em teus termos é o paraíso desejado,
O tesouro nunca visto, muito menos ouvido, jamais imaginado.
27.
Não, mas não foi nada disso.
Os solavancos, os rangidos do carro,
A gastura do tempo geram pedidos de trégua
Do coração atolado em sua mágoa –
Não o perigo, o elétrico horror, e além se descobre
Que o apelo da Paixão é mais sensível na oração com vagar.
Outra é a razão, suspeito eu, na medida do fardo
Em sua mente, da turbulência do vento, das investidas dos dragões do mar.
28.
Mas como hei-de... dá-me ali um lugar,
Alcança-me um... Vem preste, imaginação!
Espanta-te esta cena? vê o que está ali a assomar,
Coisa que ela... Ali! o Mestre,
Ipse, o único, o Cristo, o Rei, o Senhor:
Vinha curá-la do transe extremo em que a atirara, afinal!
Age, decide, domina vivos e mortos;
Doma em triunfo o orgulho dela, apressa-te, encerra esse tribunal.
29.
Ah! havia um coração de justo!
Havia olhos de ver!
E interpretar daquela noite o informe susto
E conhecer a quem e o porquê;
Como expressá-lo, senão por Aquele para quem presente e passado,
Céus e terra são a Sua palavra – só Ele a traduz? –
Uma alma ali de Simão Pedro! contra o vendaval
Firme rocha Tarpéia, mas um desabrochado fanal de luz.
30.
Jesus, coração da luz,
Jesus, filho da virgem,
Qual era a festa que se seguia àquela noite
Em que tiveste a glória dessa monja? –
Era a festa da mulher única, mulher imaculada,
Pois assim concebida, assim lhe foi dado conceber-Te,
Só que aqui, em dores-de-coração, nasce um entendimento,
Palavra que de Ti ouviu, e guardou, e foi capaz de pronta proclamar-Te.
31.
Bem, ela possuiu-Te pela dor, pela
Mansidão; mas tem piedade dos outros!
Vai, coração, e sangra em mais amarga veia
Por aqueles sem consolo ou penitência –
Não, não sem consolo: doce-oportuna Providência
Um dedo dela, uma ternura dela, Ó, de leve, delicado, o coração
Da Virgem tanto obedecia, que a retinia – seu cincerro,
Reconduzindo tresmalhadas ovelhas! – então o naufrágio é uma colheita, a procela traz a ti o grão?
32.
Eu Te admiro, Senhor das marés,
Do Dilúvio primevo, do tombar dos anos;
Freio e recuperação dos limites do golfo,
Seu cinturão, seu porto, seus flancos;
Estacando, aplacando o oceano de uma mente agitada;
Fundamento, granito do ser; além, bem além
De todo alcance, Deus entronizado por detrás
Da morte, com soberania oculta, mas atenta, que prevê, mas não intervém.
33.
Misericórdia que atravessa incólume
A vastidão das águas, arca
Para os que o ouvem; para os que o aguardam, um amor que abarca
Mais baixo que a morte e a escuridão.
Veio que alcança os encarcerados, os além-da-oração,
Os espíritos penitentes do último suspiro – extremo alvo seu,
Que o nosso gigante erguido da Paixão que o abateu
O Cristo do Pai compassivo, na tempestade de sua passagem, recolheu.
34.
Arde, pois, recém-nato para o mundo,
Nome de dupla valia
Do céu-atirado, coração-de-carne, na virgem-envolvido,
Milagre-de-chama-em-Maria;
Contado no centro dos três, no trono do trovão!
Não veio em juízo-final, tenebroso, ofuscante;
Veio bondoso, mas imperial, reclamando o que era seu;
Que nos condados baixe uma chuva cintilante, nenhum raio fulminante do Céu.
35.
Senhora, em portas nossas,
Entre nossos escolhos afogada,
Porto-Paraíso da Recompensa, ora por nós nas estradas:
Faz voltar nosso Rei sobre as almas inglesas,
Raiar em nossa treva a fonte-do-dia, aurora em carmesim acesa.
Seja seu reino, pelos séculos, para a Bretanha rara-amada um alumbramento,
Orgulho, rosa, príncipe, herói, pontífice nosso,
Fogo na lareira-caridade de nossos corações, Senhor da cerrada cavalaria de nossos pensamentos.
O naufrágio do Deutschland, Gerard Manley Hopkins, SJ, poeta
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