Para a criança, o mesmo é que dizer para o sonhador, o céu, quer vazio e imane como o chapéu de palha dum espantalho de pardais, quer pejado de enormidades beatíficas ou majestosas, queda sempre céu. Assente em sólidas colunas de cristal não há nortada que o deite a terra. A criança anda nele como em levitação. Repete-se o milagre de Jesus por cima das águas de Tiberíade.
Pela capacidade da minha alma para o sonho, ser-me-ia difícil fixar a idade cronológica. Date-se que a essa altura professava eu egoistamente a doutrina de Rómulo quanto a compartilhar com Remo o berço real. Começava por esse tempo a desaparecer de casa à socapa para ir comer os feijões-galegos do Tiago sapateiro, irmão do nosso Monge. Quanto a craveira, ultrapassava as botas de montar de meu pai, que eram de cano rígido, posta uma em cima da outra. Recordo-me ainda que me sentia com direito a santantoninho da cantareira, e que provavelmente o meu amor pelas pessoas não passava dum revérbero desse sentimento. Mas que importava isso? Como eu queria, para não ir mais longe, aquela tia Custódia que inventava, se não havia trazido do convento, arremedilhos e sirventes, tais o do Gato, nada abstracto, atrás do rato, o Tiro-Lico-Tico, e outros e outros, para meu desenfado?!
Que minha tia era feia…? Não, no mundo todo não existia mulher mais bonita que a tia Custódia. De facto, a sua cara sobre o redondo, pontuada das covas das bexigas, lembrava a criva dum regador; a vérmina roera aqui a aresta da narina, espojara-se além na comissura do lábio; passeara a sua baba corrosiva no queixo e por todo o semblante tecera o véu de grossa estopa sob que desaparece a finura e a musicalidade dos traços, que formam o carácter; o palmo de fisionomia era tal qual uma chapeirada de areia depois dum chuvisco. Além disso, desleixava-se do natural; cabelos ruços, que nem enfarinhados, trazia-os a pobrezinha à matroca, quer emaçarocados sobre as orelhas, quer em tranças esfiapadas que um lenço de merino escuro, quase de viúva, mal escondia. Mas era isto fealdade?
Se diziam, para me experimentar, que a tia Custódia era feia, eu batia o pé indignado:
– É bonita! É bonita!
Não havia nada para me acirrar, pondo-me fora de mim, raivoso e em lágrimas, como sustentarem que era feia.
– Tem razão o meu filho – apoiava minha mãe com voz triste, mas deleitada, dirigindo-se aos que, para me gozar, recorriam a esta forma de arrelia. – Minha irmã era bonita, muito bonita. Ali onde a vêem com o rosto picado das bexigas, poucas lhe ganhavam em formosura. Formosura e agrados, isso que hoje chamam simpatia. Pode mesmo dizer-se que por baixo daquele sudário espreitam feições esbeltas e bem-proporcionadas. Senão reparem. Um tantinho lua cheia?... Mas é um tipo e há quem aprecie, então não há?! Estou a vê-la como entrou para o Recolhimento, rechonchudinha, muito branca, tez fina, e os meus olhos porfiam em vê-la assim e não doutro modo. Sabem todos, pois não sabem, que minha irmã Custódia foi educada no Recolhimento de Freixinho...?
– Conte, mãezinha, conte – acudia eu atirando-me ao seu regaço.
– Ó filho, estás farto de ouvir!
– Conte, mãezinha, conte...
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